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Invasão russa à Ucrânia: uma transgressão tolerável?

Foto do escritor: Paulo Henrique Faria NunesPaulo Henrique Faria Nunes

Atualizado: 30 de set. de 2022

Após um período de longa e tensa espera, forças militares russas invadiram o território ucraniano no dia 24 de fevereiro de 2022. Os últimos anos foram marcados por altos e baixos nas relações entre Moscou e Kiev, bem como reviravoltas políticas e polêmicas trocas de presidentes mais propensos a alianças com a Rússia ou a União Europeia. A guerra de narrativas pode ser constatada, inclusive, em produções cinematográficas: Ukraine on Fire, produzido pelo premiado cineasta Oliver Stone, e Winter on Fire são documentários com perspectivas bem distintas a respeito da instabilidade política ucraniana desde o início dos anos 2000.

Em 2004, o candidato preferido do Kremlin, o então primeiro-ministro Viktor Yanukovich, foi eleito presidente com apenas 3% de vantagem sobre Viktor Yushchenko, cônjuge de uma ex-servidora do Departamento de Estado norte-americano.


"Boatos sobre fraude nas eleições levaram a uma situação de incerteza política e contribuíram para a anulação do pleito na Suprema Corte Ucraniana; nova eleição foi marcada para dezembro do mesmo ano, cujo resultado foi favorável a Viktor Yushchenko, casado com uma norte-americana. Ambas as facções políticas trocaram acusações de tentativa de golpe, mediante apoio russo ou norte-americano. As notícias veiculadas após a primeira eleição apontavam possível intervenção russa, bem como tentativa de assassinato de Yushchenko, suposta vítima de envenenamento"[1].


Um governo “pró-Ocidente” conduziu o país de 2005 a 2010. No próximo round do embate (geo)político e eleitoral, Yanukovich deu o troco e assumiu a presidência em fevereiro de 2010, mas seu mandato foi interrompido bruscamente em fevereiro de 2014. Ele – ex-governador de Donetsk – novamente entabulou relações preferenciais com a Rússia e abandonou as negociações que poderiam levar ao ingresso da Ucrânia na União Europeia. Protestos violentos, principalmente na região da capital, condenavam o alinhamento com Moscou. Ao final, Yanukovich se evadiu para a Rússia, que lhe concedeu asilo político.


Charge de Carlos Latuff publicada originalmente em https://operamundi.uol.com.br/opiniao/34200/carlos-latuff-e-na-ucrania-o-gigante-despertou


Enquanto a Ucrânia mostrava interesse na adesão à União Europeia e num possível ingresso na OTAN, o Kremlin manifestava apoio e/ou dava suporte material a movimentos separatistas em regiões com forte presença de população de origem e idioma russo (Crimeia, Donetsk, Lugansk). O ápice foi a anexação da Península da Crimeia, em março de 2004, executada em quatro atos: 1) declaração de independência; 2) referendo popular para confirmar a declaração de independência; 3) reconhecimento da Crimeia pelo Governo russo; 4) assinatura do acordo de incorporação do território da Crimeia à Rússia. Os defensores da declaração de independência e da anexação dessa parte estratégica do território ucraniano invocaram o princípio da autodeterminação dos povos e o precedente do Kosovo, cuja independência fora declarada após uma votação popular à revelia do governo sérvio em 2008. Nesse mesmo ano, a Rússia reconheceu a independência da Abecásia e da Ossétia do Sul, regiões fronteiriças que integravam a Geórgia[2]. Destaca-se que a Abecásia, assim como a Crimeia, está localizada em uma área estratégica do Mar Negro.

Igualmente importante recordar que a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) solicitou, por meio da Resolução 63/3, um parecer (opinião consultiva) à Corte Internacional de Justiça (CIJ) a respeito da situação do Kosovo em 2008[3]. No documento Accordance with International Law of the Unilateral Declaration of Independence in Respect of Kosovo, de julho de 2010, a CIJ entendeu que a independência do Kosovo não violou nenhuma norma internacional.

Rússia, Estados Unidos e União Europeia oscilaram entre a utilização e a condenação do princípio da autodeterminação dos povos de acordo com os seus respectivos interesses e conveniências momentâneas. Portanto, é bem provável que o mesmo ocorra novamente em relação a regiões da Ucrânia com movimentos separatistas simpáticos à Rússia. Fomentar a independência de um território e criar um país em prejuízo de uma terceira potência não é nenhuma novidade. A independência da Bélgica em 1830 – um Estado-tampão entre a França, a Holanda e a então Confederação germânica – atendeu a interesses britânicos; a independência do Panamá em 1903, antes território colombiano, aconteceu mais em virtude do interesse na construção de um corredor interoceânico por uma potência estrangeira do que dos anseios da população local.

O mandatário ucraniano seguinte, o bilionário Petro Poroshenko, eleito em um ambiente político muito polarizado, adotou uma retórica dura de combate aos separatistas e reintegração da Crimeia à Ucrânia. Ao longo do mandato de Poroshenko (2014-2019), a série televisiva “O servo do povo”, protagonizada por Volodymyr Zelensky ganhou notoriedade. O ator apareceu na corrida eleitoral como um outsider, com um discurso de renovação, combate à corrupção e união nacional. Eleito, teve que lidar com a pandemia da Covid-19, recessão econômica, uma confusão relacionada à eleição presidencial dos EUA em 2020 após divulgar que Donald Trump lhe pedira ajuda para investigar atividades de Joe Biden e seu filho Hunter na Ucrânia e, por último, a invasão ordenada por Vladimir Putin. Em que pese o discurso de renovação, o nome de Zelensky foi associado à manutenção de patrimônio de origem duvidosa por meio de empresas offshore nos Pandora Papers... nomes ligados a Vladimir Putin também aparecem na investigação do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, assim como figuras mais conhecidas dos brasileiros como o Ministro da Economia Paulo Guedes e o ex-Primeiro Ministro britânico Tony Blair.

A presença da União Europeia e da OTAN em ex-repúblicas soviéticas e Estados satélites do antigo “Bloco Comunista” é evidente. Eslováquia, Eslovênia, Estônia, Hungria, Letônia, Lituânia, Polônia e República Checa negociaram a adesão à UE em 2004; Bulgária e Romênia em 2007; Croácia em 2018. Por mais que haja interesses conflitantes entre Europa Ocidental e Rússia, essa não é a razão invocada por Vladimir Putin para justificar a agressão à Ucrânia. Embora a UE tenha evoluído gradualmente das questões comerciais para temas políticos, inclusive segurança coletiva, a OTAN é o problema principal pois nasceu como uma aliança essencialmente militar em oposição ao Pacto de Varsóvia no início da Guerra Fria.

A expansão da OTAN aconteceu quase paralelamente à da UE: Hungria, Polônia e República Checa (1997); Bulgária, Eslováquia, Eslovênia, Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia (2003); Albânia, Croácia (2009); Montenegro (2016); Macedônia do Norte (2019). Ironicamente, Bill Clinton e Boris Yeltsin discutiram a adesão da Rússia à OTAN na década de 1990, o que talvez tivesse evitado alguns problemas geopolíticos. A defesa do território russo contra eventuais investidas da OTAN é a razão declarada abertamente por Vladimir Putin, embora isso não torne a ação juridicamente admissível.



Aspectos Jurídicos


A invasão do território ucraniano é, sem dúvida, um ato ilícito aos olhos do Direito Internacional. Dentre os crimes de competência do Tribunal Penal Internacional (TPI), figura a agressão. A Assembleia Geral da ONU adotou uma definição de agressão em 1974, incorporada ao Estatuto do Tribunal Penal Internacional por meio de uma emenda aprovada pelos países-membros em 2010, embora nem todos a tenham ratificado. Entende-se por agressão “o uso da força armada por um Estado contra a soberania, a integridade territorial ou a independência política de outro Estado, ou de qualquer outra forma incompatível com a Carta das Nações Unidas”.

Não é difícil concluir que a invasão do território ucraniano é um ato de agressão, assim como várias outras intervenções armadas conduzidas por outras potências. Deve-se levar em conta que a Rússia e os EUA não participam do TPI... assim como a Ucrânia[4]. Washington, inclusive, já assinou tratados com países onde há bases militares norte-americanas para assegurar imunidade a seus soldados. Para o bem ou para o mal, participar de um tratado ou de um organismo internacional é uma decisão soberana que compete a cada Estado... o sistema internacional é anárquico e dispõe de uma estrutura político-jurídica precária.

Os argumentos de Vladimir Putin em 2022 lembram os de George W. Bush pouco após os atendados de 11 de setembro de 2001. Rússia e EUA tentaram cobrir seus ataques com o manto da legítima defesa:


"A legítima defesa, individual ou coletiva, pressupõe o emprego de meios razoáveis em intensidade, duração e magnitude. [...]

A legítima defesa pode [...] ser realizada antecipadamente. Entretanto, há que se determinar o quão antecipadamente um Estado pode agir.

No direito internacional, é importante determinar se a ação é preventiva ou preemptiva. O primeiro conceito (prevenção) é normalmente associado à intervenção, o segundo (preempção), à legítima defesa.

A intervenção preventiva é uma ação antecipada contra um ataque esperado em um futuro incerto. Não há aqui um ataque atual nem iminente, tampouco a certeza do ataque. [...].

A defesa preemptiva pressupõe obrigatoriamente uma agressão iminente. Portanto, para que a ação seja considerada legítima ou justa, é imprescindível que o autor tenha indícios claros pois o ônus da prova não deve recair sobre o “Estado-alvo”.

A doutrina Bush, como ficou conhecida a política norte-americana anunciada na Estratégia de Segurança Nacional em setembro de 2002[5], defendeu a adoção de critérios mais elásticos na caracterização da legítima defesa preemptiva.


Por séculos, o direito internacional reconheceu que as nações não precisam sofrer um ataque antes que elas possam legalmente empreender uma ação para se defender contra as forças que representam um perigo ou ataque iminente.

Doutrinadores e juristas internacionais frequentemente condicionaram a legitimidade da preempção à existência de uma ameaça iminente – mais frequentemente uma mobilização visível de exércitos, marinhas e forças aéreas se preparando para atacar.

Nós devemos adaptar o conceito de ameaça iminente às capacidades e objetivos dos adversários de hoje. Estados párias e terroristas não buscam nos atacar utilizando meios convencionais. Eles sabem que tais ataques falhariam. Em vez disso, eles se apoiam em atos de terror e, potencialmente, no uso de armas de destruição em massa – armas que podem ser facilmente ocultadas, transportadas secretamente e usadas sem aviso.

[...] Para evitar ou prevenir tais atos hostis por parte de nossos adversários, os Estados Unidos, se necessário, agirão preemptivamente."[6]


A capacidade de reação e resposta das instituições internacionais é limitada. O Conselho de Segurança, um dos seis órgãos principais da ONU, se reuniu para debater a invasão da Ucrânia, mas a Rússia vetou a aprovação de uma resolução no dia 26 de fevereiro de 2022. Soa estranho que uma parte envolvida no conflito tenha vetado uma resolução institucional condenando a agressão, mas isso faz parte do jogo.

O Conselho de Segurança é composto por 15 países membros – 10 eleitos pela Assembleia Geral para um mandato não renovável de dois anos e 5 permanentes (China, EUA, França, Reino Unido e Rússia). Os membros permanentes possuem poder de veto. Por essa razão, apesar dos 11 votos favoráveis, a resolução não foi aprovada no dia 26/02. China, Índia e Emirados Árabes se abstiveram[7].

A Assembleia Geral da ONU condenou o ataque russo e exortou as forças invasoras a deixarem o território ucraniano imediatamente por meio da Resolução A/ES-11/L.1, adotada no dia 1º de março[8].

Em que pese as duras palavras contra a invasão, as resoluções da Assembleia Geral não são instrumentos juridicamente vinculantes. Elas apenas têm caráter recomendatório. Assim, embora a aprovação por ampla maioria tenha um peso moral, o governo russo não está subordinado à resolução. O embate entre a opinião da maioria dos países e os desígnios de uma grande potência é uma constante no sistema das Nações Unidas. Dezenas de resoluções da Assembleia Geral, adotadas ao longo das últimas décadas, já condenaram o embargo econômico, comercial e financeiro imposto pelos EUA contra Cuba. Todas foram ignoradas. Não se defende de modo algum nesse texto a invasão da Ucrânia. No entanto não se pode ignorar precedentes semelhantes no Direito Internacional.



Perspectivas sobre o Desenrolar do Conflito


Muito se fala sobre o desejo de Vladimir Putin reconstruir o antigo Império Russo. Apesar das merecidas críticas dirigidas a Putin na condução da política interna e externa, parece anacrônico pensar no sonho de um novo império. A Rússia é o maior país do mundo, uma potência atômica e detém recursos estratégicos. No entanto, o país enfrenta muitos problemas socioeconômicos e há vários sinais que a China e a Índia terão um protagonismo maior que a Rússia em médio e longo prazo.

Dificilmente EUA e União Europeia se disporão a começar um conflito de grandes proporções com a Rússia. O Kremlin deve se empenhar em negociações futuras para afastar a Ucrânia da OTAN e anexar as regiões de Donetsk e Lugansk em troca da retirada de suas tropas. Europeus e norte-americanos manterão o discurso, mas a Europa se encontra em uma posição mais delicada pois depende largamente de recursos energéticos russos (gás e petróleo) e não tem interesse em uma nova crise de refugiados. Um dos pontos que levaram ao Brexit foi a política migratória; além disso, os países europeus tiveram vários atritos em virtude do acolhimento de estrangeiros. Uma semana após o início da invasão, já se contavam um milhão de refugiados.

As sanções econômicas e financeiras são as medidas mais duras adotadas contra Moscou. Vladimir Putin também deve aumentar a pressão para flexibilizá-las e/ou suspendê-las por completo. Poucas moedas são utilizadas no comércio internacional. O dólar ocupa uma posição hegemônica, mas espera-se que a moeda chinesa possa ser um concorrente de peso à medida que a China aumenta sua presença no comércio global. Embora Pequim tenha adotado um tom mais comedido em relação ao conflito na Ucrânia, sanções prolongadas podem favorecer uma aliança econômica e financeira entre Rússia e China.

A potência asiática tem interesse no gás, no petróleo e outros recursos naturais russos. Logo, há um cenário propício ao intercâmbio comercial entre os dois países. Em 2019, o BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) anunciou o lançamento de um sistema próprio de pagamentos que privilegia as moedas dos países-membros em substituição ao dólar norte-americano. O futuro é, obviamente, muito incerto e depende de cálculos objetivos, mas não se pode ignorar a hipótese que restringir o acesso da Rússia às suas reservas em dólares pode ter como efeito reflexo o fortalecimento do Yuan como fator de troca no comércio internacional[9].

Quanto à posição do Brasil diante do conflito, apesar da dificuldade de comunicação da Presidência da República, reproduziu-se a posição de neutralidade de 2014 quando da crise da Crimeia. Apesar do discurso de oposição à política externa do Partido dos Trabalhadores, circunstâncias políticas e econômicas levaram a um tom comedido e à neutralidade da gestão Bolsonaro.

O Brasil pode ganhar alguma projeção internacional na linha do pragmatismo responsável. Na condição de membro do BRICS e país latino-americano com boas relações com a Ucrânia, o governo brasileiro se apresenta como um possível mediador. Portanto, a cautela diplomática tem um caráter instrumental e não se distancia totalmente dos princípios regentes das relações internacionais presentes na Constituição Federal.


Paulo Henrique Faria Nunes. Advogado e professor na Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Mestre em Geografia (UFG) e doutor em Ciências Políticas e Sociais (Université de Liège - Bélgica).

[1] NUNES, Paulo Henrique Faria. Direito internacional público: introdução crítica. 2. ed. Juruá, 2019, p. 262. [2] Cf. o caso Application of the International Convention on the Elimination of All Forms of Racial Discrimination (Georgia v. Russian Federation), disponível em https://icj-cij.org/en/case/140 [3] Cf. os artigos 65 a 68 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça. O parecer relativo à independência do Kosovo pode ser consultado no site oficial da CIJ: https://icj-cij.org/en/case/141 [4] Relação dos Estados-partes do Estatuto do Tribunal Penal Internacional disponível em https://asp.icc-cpi.int/en_menus/asp/states%20parties/Pages/the%20states%20parties%20to%20the%20rome%20statute.aspx [5] O texto original da Estratégia de Segurança Nacional de 2002 pode ser lido aqui: https://nssarchive.us/wp-content/uploads/2020/04/2002.pdf [6] NUNES, Paulo Henrique Faria. Direito internacional público: introdução crítica. 2. ed. Juruá, 2019, p. 316-318. [7] O “veto” deve ser manifestado explicitamente pela potência discordante, diferentemente da “abstenção”. Relação de todos os vetos no Conselho de Segurança: https://research.un.org/en/docs/sc/quick. Portanto, a ausência de manifestação da China, um dos membros permanentes, não implica necessariamente veto [8] As sessões ordinárias da Assembleia Geral são realizadas anualmente. As sessões especiais, consoante o artigo 20 da Carta das Nações Unidas, são “convocadas pelo Secretário-Geral, a pedido do Conselho de Segurança ou da maioria dos Membros das Nações Unidas”. As sessões especiais podem ser convocadas em regime de urgência. Nesse caso, conforme a Resolução 377A(V), elas devem acontecer no prazo de 24 horas. Desde a criação da ONU, esta foi a 11ª sessão especial de emergência. [9] A questão geopolítica monetária é complexa. Recomenda-se, dentre outros, a leitura de RICKARDS, James. Currency wars: the making of the next global Crisis. New York: Penguin, 2012; LIU, Zongyuan Zoe; PAPA, Mihaela. Can BRICS de-dollarize the global financial system? Cambridge: Cambridge University Press, 2022 (disponível em <https://www.cambridge.org/core/elements/can-brics-dedollarize-the-global-financial-system/0AEF98D2F232072409E9556620AE09B0>)

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